Alice no País das Maravilhas

É um mergulho no mundo do nonsense, onde a lógica da Inglaterra vitoriana é posta de ponta-cabeça

Adriano Ferrera

9/3/20256 min read

Alice no País das Maravilhas é um mergulho no mundo do nonsense, onde a lógica da Inglaterra vitoriana é posta de ponta-cabeça. A linguagem, permeada pelo fantástico e onírico, propõe uma transgressão da realidade e um pacto com o leitor para embarcar nesse mundo.

Dentre as muitas interpretações, a clássica história de Lewis Carrol segue até hoje influenciando todos que se aventuram em sua narrativa tão cativante. relendo na vida adulta, hoje consigo enxergar muito mais as camadas presentes na obra, como a transição da infância para a vida adulta. Ao meu ver, as mudanças de tamanho de Alice ao longo do livro são uma metáfora para as transformações físicas da puberdade. A menina se sente "desconfortável" e "triste" com essas mudanças bruscas. Sem contar que ela está visivelmente perdida e atordoada naquele mundo estranho que o acaso da curiosidade a fez descobrir.

O dilema de Alice é o grande enigma da obra. Após as transformações, ela questiona sua própria identidade com a famosa frase: "Ai, ai, como tudo está esquisito hoje! E ontem as coisas aconteciam exatamente como de costume. [...] se não sou a mesma, a próxima pergunta é: afinal de contas, quem sou eu? Esse é o grande enigma." Embora isso ocorra com uma menina de sete anos, a pergunta é compatível com os questionamentos de qualquer pessoa em transição.

No País das Maravilhas, as regras de boas maneiras, a geografia e a aritmética de Alice não funcionam. Ela tenta entender tudo, "desde a corrida em círculos até as piadas do Chapeleiro Maluco", e questiona o porquê de ter que obedecer a regras que não fazem sentido.

A obra aborda medos infantis, como o medo da morte, como quando Alice cai na toca do coelho, e se preocupa em "se espatifar lá embaixo". Sua cautela é também é evidente quando, ao encontrar a garrafa "Beba-me", ela só a bebe depois de se certificar de que não está escrito "veneno" nela. A conversa com o Gato de Cheshire, onde ele afirma que todos ali são loucos, inclusive ela, sugere que é preciso ser "louco" para encarar a vida adulta.

Os personagens do livro são inevitavelmente caricaturas de pessoas e comportamentos reais da época e da vida de Alice. O Coelho Branco é um contraste com Alice; enquanto ela é audaciosa e determinada, ele é idoso, fraco e indeciso, sempre atrasado. O Dodô é visto como uma caricatura de Lewis Carroll, que era gago e, em algumas ocasiões, se apresentava com esse nome. A "corrida em círculos", em que todos correm e correm e ninguém chega a lugar algum, é uma sátira política. O Chapeleiro Maluco também tem uma base real, já que os chapeleiros da época usavam mercúrio na produção de feltro, o que os levava à loucura e a delírios psicóticos, uma condição real conhecida como "tremor do chapeleiro".

As ilustrações de John Tenniel são essenciais para a obra. O autor fez questão de que fosse ele a ilustrá-la, e hoje, os desenhos e o texto são considerados "indissociáveis" e um "corpo único". As ilustrações originais feitas pelo próprio Carroll também mostram que a Alice desenhada por ele tinha o rosto da Alice Liddell.

Uma curiosidade: O Gato de Cheshire não estava no manuscrito original, mas foi inserido depois. A expressão "sorrir como um gato de Cheshire" era comum na época, e a lenda diz que os queijos da região de Cheshire eram moldados em formato de gato. Outra teoria aponta que a personalidade "evanescente" do gato (que desaparece e aparece como bem entende) é inspirada nas fases da lua, que era associada à loucura na época.

O autor e polêmicas

Charles Lutwidge Dodgson, o homem por trás do pseudônimo de Lewis Carroll, era um professor de matemática e lógica na prestigiada Christ Church College da Universidade de Oxford. Sua vida era uma dicotomia: de um lado, a seriedade e a circunspeção do matemático e reverendo; de outro, a fantasia e o nonsense do contador de histórias. Ele era um homem puritano, recluso socialmente e que, segundo os comentários, teve uma relação rígida com a mãe, em contraste com o pai mais afável.

Dodgson ingressou na universidade com apenas 19 anos, e aos 23 já era convidado a dar aulas de matemática e lógica, sendo considerado um "gênio da matemática". Ele era um homem tímido, mas muito interessado pela infância e por jogos de tabuleiro e mágica, elementos que se refletem em suas obras.

A decisão de adotar o pseudônimo Lewis Carroll foi deliberada: Dodgson não queria que sua obra literária fosse associada ao seu nome de matemático. No entanto, sua fama como autor de livros infantis superou em muito sua reputação acadêmica, e o nome Lewis Carroll se tornou muito mais conhecido do que o de Charles Dodgson.

A inspiração para os livros surgiu de uma pessoa real: Alice Liddell, uma das filhas do reitor de sua faculdade. A primeira história, que daria origem a "Alice no País das Maravilhas", foi improvisada por Dodgson em um passeio de barco no rio Tâmisa, em 4 de julho de 1862, para Alice e suas duas irmãs, Lorina e Edith.

Originalmente, o manuscrito tinha o título de "As Aventuras de Alice no Subterrâneo" (Alice’s Adventures Under Ground). Foi apenas a pedido da própria Alice Liddell que Dodgson resolveu colocar a história no papel, ilustrando-o e entregando-o a ela no Natal. O segundo livro, "Através do Espelho", levou seis anos para ser criado e foi uma continuação escrita a pedido de seus leitores, com uma estrutura muito mais pensada, concebida como um jogo de xadrez.

As transcrições destacam o caráter revolucionário dos livros de Lewis Carroll, pois eles não tinham uma "moral" ou um ensinamento explícito, ao contrário das histórias infantis da época. Essa ausência de moralidade abriu um espaço privilegiado para a imaginação da criança.

A Relação Controvertida com Crianças

A relação de Dodgson com Alice Liddell e suas irmãs era complexa. As transcrições mencionam que ele gostava das crianças, mas preferia apenas meninas, pois via nelas a "inocência original". Ele inclusive se correspondia com Alice e suas irmãs, e a partir de 1856, desenvolveu o hobby da fotografia, tirando fotos das crianças, fotos estas que geram todo tipo de debate a respeito não só de Charles como dos pais das meninas que autorizavam a amizade de Charles com as crianças. Ele também gostava de desenhar as crianças.

Embora não haja provas de pedofilia, essa conduta certamente é vista com estranheza hoje. Porém o contexto histórico também é crucial em todo o entendimento do assunto, já que a "noção de infância" na Era Vitoriana era bem diferente, e a idade de consentimento para meninas era de 12 anos.

Então o intuito aqui é permitir que você que lê este artigo, reflita por si só a respeito do assunto e busque também opiniões e informações a respeito da época principalmente. Outro fato é que os diários de Dodgson foram adulterados por suas sobrinhas, que teriam retirado as páginas que consideraram as mais "problemáticas", o que só ajuda todo tipo de especulação sobre o assunto.

Referências

Alice no País das Maravilhas - Edição comentada. Editora Zahar

Alice Através do Espelho – Edição comentada. Editora Zahar

Uma História Natural da Curiosidade. Alberto Manguel

À Mesa com o Chapeleiro Maluco. Alberto Manguel

Conheça LEWIS CARROLL, o autor de Alice no País das Maravilhas

As aventuras CALEIDOSCÓPICAS de Alice no País das Maravilhas

XEQUE-MATE: as pluralidades de Alice através do espelho

Literatura Fundamental 80 - Alice - Lewis Carroll - Sandra Vasconcelos